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Set 2021

Como aplicar o método clássico de ensino da língua – Parte 5

O Poder da Linguagem | 10 min.

20/09/2021

Continuando a nossa série (início) destinada a explicar como se aplica o método clássico de ensino da língua, trataremos no presente artigo do quarto e último passo, último e mais importante: o estudo do texto.

 

O que vimos até aqui

Em breve retrospectiva, vimos que a realização de uma aula estruturada segundo o método clássico pede, em primeiro lugar, a escolha de um texto literário de grande qualidade formal cujo conteúdo seja atraente ao aluno. Em seguida, é preciso que o pai ou professor leia com atenção a obra eleita, buscando, por um lado, sanar as dificuldades que o texto possa impor a ele próprio, e, por outro, selecionar os conteúdos a serem abordados com a criança.

Esses dois passos, como dissemos, devem ser percorridos antes da aula. O início das atividades com o aluno se dá com a apresentação do texto, nos termos em que detalhamos no artigo anterior.

 

Método clássico e etapa gramatical do trivium: breve definição

Estamos já com o material em mãos, a sequência da aula na cabeça e a criança predisposta diante de nós. É hora de avançarmos para a etapa final: a leitura, os comentários e os exercícios.

O que temos chamado de método clássico de ensino da língua coincide com a fase gramatical do trivium, o conjunto de três disciplinas voltadas ao domínio da linguagem que o jovem precisava estudar antes de saltar para as matérias mais avançadas.

Essa primeira fase se chamava Gramática, mas tenha em mente que o termo aí não tem o mesmo sentido que hoje costumamos empregar. Mais do que o estudo do conjunto de normas que regem uma determinada língua, a Gramática, como os antigos a entendiam, era a arte de ler os grandes escritores, os maiores poetas.

Essa é a definição mais tradicional. Dionísio, o Trácio, estudioso que escreveu a primeira gramática grega, no século II a.C., definiu assim a nova disciplina:

“A gramática consiste no conhecimento do que é dito, sobretudo pelos poetas e prosadores. São seis as suas partes: primeira, leitura cuidadosa de acordo com a prosódia; segunda, explicação das figuras poéticas; terceira, interpretação, em termos usais, de palavras raras e de argumentos; quarta, busca da etimologia; quinta, exposição da analogia; sexta; crítica dos poemas, que é a parte mais bela da gramática”[1].

Quer dizer, a definição mesma de gramática pronunciava um método e uma finalidade: o método era a leitura pormenorizada e comentada dos clássicos da literatura; e a finalidade era o conhecimento aprofundado desses mesmos escritos, fonte não só de refinado manejo com a língua, bem como de fartas referências culturais de várias ordens.

Essa noção se manteve basicamente inalterada e podemos reencontrá-la, um milênio depois, na Idade Média, por exemplo nos escritos de John de Salisbury, sábio religioso e político inglês que teve a chance de estudar com o filósofo Bernardo de Chartres. Vejam como ele descreve uma aula do seu mestre:  

“Bernardo de Chartres, em tempos recentes, a maior fonte de ensinos literários na Gália, costumava ensinar gramática da seguinte maneira. Demonstrava, na leitura dos poetas, o que era simples e conforme a regra. Por outro lado, explicava as figuras gramaticais, os embelezamentos retóricos e subterfúgios sofísticos, bem como as relações de determinadas passagens com outros campos de estudos. Ele, todavia, não ensinava tudo de uma só vez. Pelo contrário, dava suas instruções gradualmente, segundo a capacidade de assimilação de seus alunos.

Sempre que tinha oportunidade, Bernardo costumava explicar a seus ouvintes o motivo de ser brilhante uma tal passagem, seja porque as palavras foram bem escolhidas, e os adjetivos e verbos admiravelmente adequados aos substantivos aos quais vinham ligados, seja pelo emprego de metáforas, por meio das quais o significado do que é dito transfere-se para além do sentido comum”.

Temos, como se pode ver, a mesma técnica milenar de leitura comentada dos clássicos. E mais:

“Na medida em que os exercícios a um tempo fortaleciam e afiavam a inteligência de seus alunos, Bernardo esforçava-se por fazê-los imitar o que ouviam. [...] A cada estudante, a uns mais e a outros menos, era exigido que recitasse (de memória) parte do que havia escutado no dia anterior”[2].

Procedia-se, enfim, a memorização, também conforme o modelo antigo:

“Ele também explicava os poetas e oradores que serviam como modelo aos jovens em seus exercícios introdutórios de imitação, em prosa e poesia”.

Essa é a maneira mais tradicional, ao menos na nossa civilização (erigida sob mármore grego), de se transmitir a língua e cultura a uma criança.

Mas vamos esmiuçar o método.

 

Enfim, a aula

 

Leitura expressiva

O trabalho se inicia com uma leitura exemplar do texto, feita pelo adulto. É preciso dar um modelo de leitura em voz alta, habilidade fundamental para uma boa compreensão do escrito.

Quando lemos para a criança, estamos demonstrando, de um modo muito marcante, como, por um lado, se pronuncia corretamente as palavras da nossa língua (ortoépia), e como, por outro, se modula a voz, em variações de ritmo, tempo, volume etc., para que a frase seja lida com a entonação correta (prosódia).

Ato seguinte, é a vez do aluno, tomando como base a exibição do adulto, ler de modo expressivo o texto da aula. Nessa hora podem surgir várias oportunidades para se fazer correções e se apresentar novos temas relacionados à boa elocução

Vale dizer que para crianças que estão saindo da alfabetização esse momento da aula é crucial, já que essas atividades vão lhes conferindo maior fluência na leitura, habilidade sem a qual o processo de letramento não fica completo jamais.

 

Comentários: assuntos linguísticos

O texto já declamado, é tempo de proceder a leitura lenta, pormenorizada, com vistas a decifrar o sentido das palavras, das frases, das figuras. Esse é o coração da aula. É nesse ponto em que os conhecimentos de gramática normativa, de sintaxe, de semântica etc. são apresentados, e isso na medida em que o texto os exigem, e na medida também em que o adulto acha conveniente abordá-los, de acordo com o nível atual do aluno.

Na prática, no que diz respeito aos conhecimentos propriamente linguísticos — falarei na sequência de conteúdos de outras ordens —, seguimos numa progressão de assuntos dos mais básicos aos mais complexos. No primeiro momento usamos os textos para ensinar a forma das palavras, as suas partes componentes, as suas origens e mutações ao longo dos tempos, as suas variações, as funções que desempenham, as realidades que indicam.

Claro, como o objetivo desde sempre é fazer com que o aluno compreenda melhor o texto, é natural que caminhemos em outros campos. Precisamos falar acerca da frase e sua estrutura, precisamos perguntar, por vezes com termos menos repelentes, qual é o sujeito de determinada oração, ou qual é o complemento de determinado verbo. Entretanto, há um enfoque inicial na palavra, enfoque essencial para os estudos seguintes.

Também desde o começo trabalhamos a versificação, que é o estudo da forma dos textos poéticos.

Aliás, os textos em versos, saídos das nossas melhores penas, oferecem uma série de vantagens para a aplicação do método clássico e vale a pena escrever um artigo só para listá-las e explicá-las.

Por ora, vale dizer que desde as primeiras aulas estudamos a estrutura dos versos, suas sílabas, suas medidas, as estrofes que compõem, as rimas que produzem e assim por diante.

Diga-se que a versificação mantém presença ao longo de todo o processo de formação em linguagem, avançando em complexidade pari passu com as outras matérias, como a sintaxe, foco de interesse depois de bem sedimentados os conhecimentos morfológicos, a semântica, a estilística, e a crítica, assuntos do topo, do final do processo.

 

Comentários: cultura geral

Disse que falaria de assuntos de outras ordens que devem ser trabalhados também nessa leitura comentada. Vejamos.

A finalidade desse método é dupla: de um lado, pelo refinamento da língua, se destina a ordenar o pensamento e dar todos os subsídios para que o aluno seja capaz de se expressar com clareza e precisão, pela fala e pela escrita; de outro, objetiva inserir o jovem na cultura geral, obtendo conhecimento de uma série de assuntos que, além de ajudá-lo a se orientar no tempo e no espaço, vão servir como suplemento à inteligência e matéria para a comunicação.

Sendo assim, é necessário aproveitar as oportunidades que os textos escolhidos nos fornecem para que apresentemos, às crianças, temas de toda a sorte, de mineralogia à religião.

Evidente que não se trata de dar cursos inteiros acerca de todos os assuntos curiosos que nos aparecem. Temos sempre que lembrar da história, da narrativa.

Tudo consiste em saber ponderar, descobrir a boa medida, coisa que vai se afinando com o tempo, com a prática.

Mas ainda assim, não só podemos como devemos, desde o começo, fazer a apresentação desses assuntos que, na falta de melhor termos, vamos chamar de extralinguísticos.

 

Um exemplo

Para exemplificar tudo isso, vamos ler um trecho dos já várias vezes mencionados Contos da Cantuária, de Geoffrey Chaucer. Diz assim, no seu prólogo-geral:

 

Quando o chuvoso abril em doce aragem

Desfez março e a secura da estiagem,

Banhando toda a terra no licor

Que encorpa o caule e redesperta a flor,

E Zéfiro, num sopro adocicado,

Reverdeceu os montes, bosques, prados,

E o jovem sol, em seu trajeto antigo,

Já passou do Carneiro do Zodíaco,

E melodiam pássaros despertos,

Que à noite dormem de olhos bem abertos,

Conforme a Natureza determina

— É que o tempo chegou das romarias.

E lá se vão expertos palmeirins

Rumo a terras e altares e confins;

Da vária terra inglesa, gente vária

Põe-se a peregrinar à Cantuária

Onde jaz a sagrada sepultura

Do mártir que lhes deu auxílio e cura.

 

No trecho o poeta narra a passagem do inverno à primavera, época em que os peregrinos ingleses saiam à Cantuária, no sul da ilha, a fim de visitar o túmulo de Tomás Beckett, santo mártir a quem se atribuí, desde o seu brutal assassinato, toda sorte de milagres, sobretudo aqueles ligados à cura.

Na aula, depois da leitura expressiva, poderíamos, no decurso dos comentários, estudar o sentido de uma série de palavras, como: aragem (brisa), estiagem (tempo seco), licor (bebida alcóolica espessa e adocicada), caule (haste das plantas, como que seu tronco), e assim por diante.   

Poderíamos, se fosse o caso, trabalhar morfemas, como o prefixo re, com sentido de novamente, que aparece em re-desperta e re-verdece.

Ainda nesse campo, poderíamos estudar a etimologia de uma ou mais palavras, como março, que, assim como marcial, derivam de Marte, um dos planetas da nossa galáxia e deus da guerra na mitologia romana (identificado com Áries, da mitologia grega).

Para trabalhar o senso narrativo e, ao mesmo tempo, afinar noções de construção frasal, poderíamos usar os verbos para perguntar:

— Quem desfez março e a secura da estiagem?

— O chuvoso abril.

— Quem reverdeceu os montes, bosques, prados?

— Zéfiro.

E assim por diante.

Podíamos, de outro modo, explicar alguma figura de linguagem, como a metáfora que se lê em “licor que encorpa o caule e redesperta a flor”.

Ora, o poeta usa o licor para representar a seiva vegetal. Faz isso porque a bebida tem propriedades, mormente a viscosidade, que lembram o líquido das plantas. Além de remeter ao sabor e ao cheiro, que são doces, num trecho em que se descreve o desabrochar das flores primaveris. A palavra licor, mais do que seiva, aguça nossos sentidos e nos comunica com mais vivacidade a mudança de estação.

Ainda poderíamos falar de mitologia, aproveitando a menção a Zéfiro, para os gregos, uma das quatro principais personificações dos ventos, ao lado do Euro, do Noto e do Bóreas; poderíamos falar de astronomia com base no trecho “e o jovem sol, em seu trajeto antigo, / já passou do Carneiro do Zodíaco”, que descreve a passagem do sol pela constelação de Áries (também chamada de Carneiro), no início (“jovem sol”) do ciclo zodiacal (“no seu trajeto antigo”), entre os meses de março e abril; ou poderíamos falar do curioso mecanismo natural de defesa dos pássaros que dormem com um dos olhos bem abertos, tema de zoologia, ou das romarias medievais, ou da vida e morte do Santo da Cantuária, tema de história.

Vejam quanta riqueza de conteúdo em um trecho tão curto, quanta coisa de valor podemos ensinar.

Dispensa dizer que numa única aula seria contraproducente ensinar tudo isso. Não é o que se recomenda. O que queremos pôr em evidência, com o exemplo, são essas múltiplas possibilidades que um bom texto oferece. O que se vai aplicar na aula concreta depende, como já dissemos, do nível atual do aluno e do planejamento geral do pai ou do professor.

 

Exercícios

Feita essa leitura e análise do texto, tendo já o aluno o compreendido de modo suficiente — o que se pode atestar fazendo perguntas diretas, oralmente —, é hora de indicar exercícios conceituais e práticos para que os conhecimentos e habilidades trabalhados na aula não se percam no limbo da memória.

Esses exercícios são de várias ordens. Por exemplo, para melhora na concentração e memória de curto prazo, podemos empreender ditados; para desenvolver a memória longa, a enriquecendo não só com histórias, mas com belas e variadas formas de expressão, vale pedir que o aluno decore pequenos trechos; para aperfeiçoar o senso de percepção narrativa, podemos pedir resumos, escritos ou orais; para aprofundar o entendimento quanto a construção de frases, podemos pedir que o aluno coloque em ordem direta ou indireta uma determinada oração, ou que aponte a função de cada termo, sintagma ou oração na arquitetura de um período composto etc.

Ao lado disso, há toda uma gama de exercícios voltados à escrita, desde a mera cópia até, lá na culminação dos estudos, a elaboração de pequenas narrações, apólogos, dissertações e críticas.

É prudente dizer que, semelhante ao que se disse sobre a apresentação dos conteúdos, os exercícios devem igualmente ser aplicados aos poucos, e de maneira variada e progressiva.  Vale aí a constância, tanto do responsável na elaboração e correção das tarefas, quanto do aluno na pontual realização.

 

A importância da revisão

Diga-se, por fim, que as explicações da aula e a resolução dos exercícios (mormente os de ordem teórica) devem ser revisadas de tempos em tempos.

Aliás, o professor Pierluigi Piazzi, que dedicou muito de sua vida a compreender e explicar o processo de aquisição de conhecimentos de seus alunos, insistia em dizer que tanto a realização das atividades pós-aula quanto a revisão dos conteúdos estudados eram partes fundamentais de todo o processo. E não é difícil justificar. Nesses momentos, nesses de “lição de casa”, há uma participação mais ativa e autônoma das crianças, o que as leva a elaborar, por conta própria, raciocínios mais complexos, conectando melhor as ideias, formando sínteses em termos próprios, sentindo os pequenos mais valiosos avanços intelectuais. Dizia o professor, e parece com muita justiça, que é nesse esforço solitário que verdadeiramente ocorre o aprendizado.

 

 

[1] DIONÍSIO, O TRÁCIO. Gramática. Madrid: Editorial Gredos, 2002.

[2] Ibidem.


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